sábado, 23 de fevereiro de 2008

óculos escuros

desculpe os olhos vermelhos. acordei antes de resolver meu sonho.

sim, ficou pela metade o gole de angústia. um meio-susto. quase pesadelo.
o sol veio rápido demais. balançava como uma lâmpada pendurada do lado de fora da janela.
no varal, negativos dos gestos de ontem expostos à luz do meio-dia. canção de ruídos esquisitos. melodia pelo avesso.
o verão persiste como tradução do corpo do mundo no suor humano. o calor faz com que o ar toque nas pessoas. as mãos do vento são quentes e úmidas. fazem brilhar a pele.

mais uma vez, a cidade amanhece como se nada tivesse acontecido.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Lido

quem me lê não entende. não escrevo ficção. realidade líquida, noves fora, texto fluido nascido do instante-agora em que tudo existe. fiel. tudo é filho do mesmo tempo e se vai na mesma velocidade com que o olho esquece o texto por que já passou. o já lido.

quem me lê não me entende. quero dizer o que digo. não troco nomes para preservar pessoas. identidades foram feitas para serem gastas no uso. e na sola dos meus papéis ficam as marcas do não escrito. até isso se registra por si mesmo. aquilo com o que não lido.

sou uma pessoa lida. por várias outras. alguns trazem o conhecimento de línguas segundas por julgarem compartilhada uma estrangeiridade. outros vêm com teorias sobre pontes e muros. ainda há os que preferem as lentes do olho nu. e todos estranham quando os sismógrafos nada acusam.

meu texto é claro para quem sabe escutar. de mãos vazias. sem vontade de compreender. não ofereço mapas além dos caminhos das palavras. todas as portas estão abertas. traço, linha a linha, o esboço de uma nova e inútil arquitetura. câmara de ecos num mundo de surdos-mudos.

a estrada silenciosa quase não mais se distingue da paisagem. e os livros continuam dormindo enquanto não aparece quem os abra.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Olhar/ver/enxergar

Sou cego também. Não porque veja menos. A miopia foi um presente que desde muito cedo fez meu olhar diferente. Gosto do que não vejo. As falhas do rosto, o cabelo mal penteado: tudo o que me escapa na hora do espelho me faz mais bonito. Minha imagem mais simples, sem tantos detalhes. Eu justo. Como tenho que ser.

Sou cego também. Não porque veja mais. Nem melhor que ninguém. Vejo como só eu sei ver. Só. E só eu percebo pormenores importantíssimos em tudo que atrai minha atenção. Coisas imprescindíveis ao meu ver. Questões de vida ou morte. Mas a vida e a morte são só minhas. Pessoais e intransferíveis.

Impossível falar do que vejo. Cada um vê como vê. Uns apenas olham, acreditando na falsa passividade desse gesto tão complexo.

Conheço gente que vê muito pouco, apesar de não precisar usar óculos. Eu sempre precisei, mas deixo eles em casa muitas vezes. Não me lembro de nada que perdi de ver por não estar de óculos. Conheço gente que deixa em casa a capacidade de enxergar sentido no mundo. E sai pela vida esbarrando nos próprios sentimentos. Ver é uma responsabilidade grande. E ninguém precisa de olhos para isso.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Reza em forma de música

Antífona
(Zé Modesto)

Nossa senhora mãe preta do Paraíba
Dá tua benção pra gente ir cantando em frente
E pela frente põe gente em nosso caminho
Pra nós cantar e ter sempre alguém ouvindo

Nossa senhora vigia
Esparrama o teu amor
Pra que na vida a poesia
Nos seja causa maior
Não seja a raspa do tempo
Que ele côa ligeirinho
Seja a poesia o alimento
A sustança no caminho

Cuida que haja o afago
E todo amor que ele tem
Que os corações que andam vagos
Encontrem logo seu bem
Nessa vida sem carinho
O nosso destino é vão
Quem é que na vida sozinho
Tem feliz seu coração

Sinhá preta seja abrigo
Nas horas de precisão
Que a gente saia do umbigo
E viva mais comunhão
Batendo menos cabeças
Fica leve a nossa cruz
Tua benção sinhá nas encrenca
Tua glória nos dias de luz


Mais sobre Zé Modesto aqui.
E aqui você ouve a música.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

luto por nascer

quando acaba o idílio, só nos resta recorrer à maturidade.

acendeu-se a luz. acabou-se a música.

não existem mapas para orientar os náufragos do sentido. náugrafos da palavra velha, puída pelo uso. a frase desbotada. mantra que já não funciona. esgotou-se na repetição.

sempre que a borboleta bate asas, cai morta uma tentativa desajeitada de alegria. o ser humano tem dificuldade em resistir à realidade. quando cai a máscara do sonho, parece mais fácil criar fantasmas que encarar o espelho.

como nos amedronta o silêncio. a ponto de nos provocar o grito que não deixa ouvir as ondas quebrando mansas na praia deserta. construindo palavras, sílaba por sílaba:

dentro de você, o ôco - vazio
fora de você, o eco - solidão

verdades que não queremos ouvir. verdades que alimentamos e deixamos crescer. como se fosse uma lei sem escapatória possível.

o mundo muda todo dia para quem não tem medo de juntar passado e futuro no momento-agora. fora disso, nada existe. só promessa e lembrança.

enquanto eu mantiver o hábito de escrever cartas para mim, saberei que alguém aqui dentro ainda existe enquanto projeto: motivo de impulso e busca.

04/02/08