segunda-feira, 31 de março de 2008

Casa

chove. destelham a casa velha da esquina. a memória das paredes lavada pela água. sujeira que escorre para a rua sem passar pelo jardim. onde havia muro, cacos. onde havia porta, só o espaço. tapumes de uma construção futura. sem passado.

a casa habitou sonhos numa infância distante. já abrigou família de nome. já foi uma escola. de tão fechada que andava, ninguém percebeu que por dentro não morava mais gente. até chegarem escadas e marretas para expor o chão de ladrilhos ao céu. carregado. cinzento. não há mais teto que proteja seu brilho pacientemente encerado.

chove. destelham a casa velha da esquina. mais uma.

a casa continua habitando sonhos. ontem ela sobrevoava o bairro. flutuava serena, escolhia um dos arranha-céus mais altos e, de repente, sobre ele caía com a força dos anos. onde havia prédio, agora apenas a casa. olhando calma com seus olhos de janela os passantes que comentavam sem vontade como o passado vinha destruindo sem dó o futuro artificial que tentavam criar para aquela cidade. alguém dizia: mas isso não é só aqui, acontece no mundo todo! é o progresso! precisamos destruir para progredir!

acordei rindo da capacidade irônica daquela casa moribunda.

quinta-feira, 27 de março de 2008

acalanto

calor e silêncio. povoam o vazio meras memórias de ventania. tudo cala num instante que se estende até onde alcança a sede adiada em palavras não ditas. enquanto penso num eixo para tudo o que pretendo escrever, vai se esgarçando o tempo. revelando as falhas da dimensão presente. não consigo ver sentido no ar que pesa. não consigo ouvir calma na madrugada muda. o tecido do agora me aparece esticado no espaço. infinito. minha mão empunha a pena e quer rasgar o véu do falso sossego. mas o corpo se adianta e deita na rede daquele momento sereno. é a pele que vai tatuando as horas com uma canção sutil. uma canção que é apenas sopro. uma canção de olhos fechados...

quarta-feira, 19 de março de 2008

Solar

enxergo chuva nas sombras que projeto pela rua. são rastros de desejos. desdesejos. março não existe sem a memória enxuta da água que cai. as sombras breves são relato de um escuro passado. nuvens que se projetam em nuvens. no entanto, o céu me desmente em azul de fogo. arquitetura da luz na superfície de uma nova percepção da manhã. já tarde. o tempo é ficção de relógios. e não existe nenhuma noção do que seja agora sem o ontem que carregamos envolto em esquecimento. ninguém arranca folhas de calendários. são os dias que nos arrancam da vontade de permanecer. são os dias que transformam em ar a dor das ilusões tornadas realidade. são os dias que tecem em pelos de leão as formas exatas da memória. são os dias os presentes.

terça-feira, 11 de março de 2008

A Lua

o escuro é líquido. eu poderia ver todas as cores do invisível se abrisse os olhos. em vez disso, estendo as mãos. enxergo formas submersas. seres que dormem num mar de sonho. irmãos da espera. de repente, sinto que me tocam o rosto. e são meus próprios dedos tateando. do lado errado do espelho. o espanto agita os braços, como se nadasse.

a noite é líquida. as cores dos seres que eu não vejo se misturam às ondas do mar de águas negras. o olho do céu se abre acima do mundo. compasso de espera. três sonhos me foram enviados. três sonhos que me tocaram a fronte sem que eu acordasse. movimento invisível escrevendo caminhos na superfície do nada. torpor.

a vida é líquida. o corpo vibra em desespero. tenta fluir. mas não pode respirar. não existe fundo na alma noturna. a pele molhada acorda apenas quando a lâmina mistura o dentro e o fora. neste ponto exato, começa a vida.


sexta-feira, 7 de março de 2008

quinta-feira, 6 de março de 2008

novidade

texto novo no site primeira fonte sobre o filme "não por acaso"

domingo, 2 de março de 2008

Vibrações

Quero ser tambor
(José Craveirinha, Moçambique 1922-2003)

Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Oh velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!