segunda-feira, 30 de março de 2009

Bernard Noël

Segue um trecho das traducões que andei fazendo deste poeta francês. O texto original, intitulado Les états du corps (Os estados do corpo), encontra-se no livro Extraits du corps (Extratos do corpo) e é composto de onze partes numeradas.



7

No sétimo momento, o tempo recomeça. As execuções também e, por via de conseqüência - ou mesmo de causalidade - as guerras, as revoluções. O corpo recupera assim o crédito, pois torna bom o matar. Distinguimos nele a cabeça, a parte de baixo e o meio. Não estamos certos de que morrer e matar sejam o mesmo embora seja o mesmo seu resultado. Matar é um buraco, afirma uma escola; morrer é uma evasão, afirma a outra. Nos evadimos por um buraco, assegura a mais nova.

domingo, 29 de março de 2009

Observação da lua

(link da foto aqui)


I - Minguante


O escuro
nítido

como as bordas do arco
invertido

equilibra o céu
noturno.

A lua exala
uma ausência
sem espera.

Vazio
intraduzível

entre os escombros
serenos
da madrugada.

Não há
duração:

apenas as
formas mais puras

do silêncio.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Lá vem a cidade

(Lenine e Bráulio Tavares)

Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá,
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar...

Vi a cidade passando,
Rugindo, através de mim...
Cada vida
Era uma batida
Dum imenso tamborim.
Eu era o lugar, ela era a viagem
Cada um era real, cada outro era miragem.

Eu era transparente, era gigante
Eu era a cruza entre o sempre e o instante.
Letras misturadas com metal
E a cidade crescia como um animal,
Em estruturas postiças,
Sobre areias movediças,
Sobre ossadas e carniças,
Sobre o pântano que cobre o sambaqui...
Sobre o país ancestral
Sobre a folha do jornal
Sobre a cama de casal onde eu venci.

Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá,
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar...

A cidade
Passou me lavrando todo...
A cidade
Chegou me passou no rodo...
Passou como um caminhão
Passa através de um segundo
Quando desce a ladeira na banguela...
Veio com luzes e sons.
Com sonhos maus, sonhos bons.
Falava como um camões,
Gemia feito pantera.
Ela era...
Bela... fera.

Desta cidade um dia só restará
O vento que levou meu verso embora...
Mas onde ele estiver, ela estará:
Um será o mundo de dentro,
Será o outro o mundo de fora.

Vi a cidade fervendo
Na emulsão da retina.
Crepitar de vida ardendo,
Mariposa e lamparina.
A cidade ensurdecia,
Rugia como um incêndio,
Era veneno e vacina...

Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá,
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar...

Eu pairava no ar, e olhava a cidade
Passando veloz lá embaixo de mim.
Eram dez milhões de mentes,
Dez milhões de inconscientes,
Se misturam... viram entes...
Os quais conduzem as gentes
Como se fossem correntes
Dum rio que não tem fim.

Esse ruído
São os séculos pingando...
E as cidades crescendo e se cruzando
Como círculos na água da lagoa.
E eu vi nuvens de poeira
E vi uma tribo inteira
Fugindo em toda carreira
Pisando em roça e fogueira
Ganhando uma ribanceira...
E a cidade vinha vindo,
A cidade vinha andando,
A cidade intumescendo:
Crescendo... se aproximando.

Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá,
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar...

sábado, 7 de março de 2009

Sophia de Mello Breyner Andresen


Este poema já me deu muito o que pensar desde que o li pela primeira vez no início do ano...



As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra


"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão."


Ó vendilhões do templo
Ó constructores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito


Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.