Ando às voltas com a literatura do catalão Enrique Vila-Matas, autor das melhores páginas que li nos últimos tempos. Resisti à tentação de traduzir alguma coisa antes de terminar o livro que estou lendo, mas o trecho a seguir (por sua ligação com toda a minha pesquisa sobre a voz e a palavra cantada) me fez interromper a leitura por meia-hora. Eis a tradução:
Tinha ouvido falar das vozes de Marrakech, mas não sabia se estas tinham realmente algo de peculiar. Talvez sejam diferentes do resto das vozes do mundo, eu me disse ao instalar-me na varanda do café de onde se divisava a praça de Xemaá-el-Fná. Deu-me de pensar que nunca se fala da cor das vozes e que talvez em Marrakech isso fosse possível. Voz terra de Siena de Petrarca, voz cor de traje de faquir hindu. Talvez em Marrakech, eu me disse, as vozes tenham cor. Não tardei em comprovar que andava certo. Aproximou-se um garçom marroquino e, ao perguntar-me o que desejava tomar, pareceu-me que sua voz, que evocava o fundo sonoro dos muezins quando dos minaretes convocam o povo à oração, era uma voz cor cal de torre de mesquita. E pedi religiosamente um chá.
Apareceu um orate de pele escura, raça negra, branca cafetã impoluta. Toda minha atenção centrou-se nele e no seu ingrávido edifício sonoro. Nunca tinha visto trejeitos tão airados e tão sobriamente compassados ao ritmo de umas vibrações acústicas, inaudíveis para mim, que se apoderavam com grande energia do ambiente e que pareciam reproduzir, no ar entrecortado pelos gestos, uma história.
Imaginei que o orate só possuía uma história e que esta falava de um tronco triste alçado como mastro. Falava dele mesmo e dos dias em que lhe dominaram as ânsias de aventura. O orate negro tinha viajado a terras longínquas e, em seu périplo, foi apropriando-se de fragmentos de histórias que dissimuladamente havia escutado. Com todos estes retalhos foi compondo o romance airado e musical de sua vida: uma história que, com ritmo sincopado e artimanhas de mímico, vendia diariamente como um sonho a um público sempre devotado e fiel, ali em Xemaá-el-Fná.
Era a história ou o resumo fictício do que tinha sido sua vida. Uma vida sintetizada em quatro gestos que clamavam ao céu e em quatro vibrações acústicas e rítmicas de voz cor fraque branco de músico de jazz. Voz de orate negro. Na verdade aquela era toda uma voz de cor.
Enrique Vila-Matas. "La fuga en camisa". In. Recuerdos inventados. Barcelona: Anagrama, 1994 [originalmente publicado em Una casa para siempre] Tradução minha.
2 comentários:
www.enriquevilamatas.com
ai, ai, que sem vc eu nem vivo. mas com vc vou descobrindo mais vida neste planeta. Deus esteja contigo, viu?
te amo e muito
eu
Postar um comentário