quarta-feira, 23 de abril de 2008

poética da sobrevivência

cortar as palavras
para ver jorrar seu
sangue

repartir o pão
em santíssima
trindade:

apenas letras
imaginadas
no centro da mesa
vazia.

pronunciar o outro
para não esquecer
de si

e de que
resta a pele da voz

quando se faz
impossível
a escrita

domingo, 20 de abril de 2008

São João

o menino dorme
na rede
enquanto a tarde
se arrasta
em mormaço
e sono

seu braço
pendurado
balança sem vontade
e arrasta um bocejo
no chão.

o menino dorme
na rede
solto num instante
que se espraia

sem vento
sem motivo
sem ninguém
que o observe:


esquecido
da vida,
ele se deixa
sonhar

quarta-feira, 16 de abril de 2008

escultura de livro

Papel é matéria prima: para amantes do origami, para desenhistas e desenhadores, para correspondentes que insistem no sistema postal, para fazedores de jornal, para todo mundo que escreve (direto com caneta e lápis ou através da impressora), para quem acha que panfletos funcionam como propaganda... Papel é também matéria-prima de livro.

Livro é matéria-prima: para livreiros e donos de sebos, para professores/alunos/curiosos, para críticos literários, para quem compra por metro romances franceses encadernados em couro para decorar a sala. Livro é matéria-prima para quem não troca a leitura com os cinco sentidos (aquela leitura-abraço) pela tela fria do computador - que facilita muita coisa, mas não dá conta de tudo...

Mas livro de papel também é matéria-prima de escultura. Deixo aqui as palavras e uma imagem da artista inglesa Su Blackwell.


"Paper has been used for communication since its invention; either between humans or in an attempt to communicate with the spirit world. I employ this delicate, accessible medium and use irreversible, destructive processes to reflect on the precariousness of the world we inhabit and the fragility of our life, dreams and ambitions. It is the delicacy, the slight feeling of claustrophobia, as if these characters, the landscape have been trapped inside the book all this time and are now suddenly released. A number of the compositions have an urgency about them, the choices made for the cut-out people from the illustrations seem to lean towards people on their way somewhere, about to discover something, or perhaps escaping from something. And the landscapes speak of a bleak mystery, a rising, an awareness of the air"

Su Blackwell. Mais informações (e imagens) aqui.

terça-feira, 15 de abril de 2008

o sono de Deus

V

Para um Deus, que singular prazer.
Ser o dono de ossos, ser o dono de carnes
Ser o Senhor de um breve Nada: o homem:
Equação sinistra
Tentando parecença contigo, Executor.

O Senhor do meu canto, dizem? Sim.
Mas apenas enquanto dormes.
Enquanto dormes, eu tento meu destino.
Do teu sono
Depende meu verso minha vida minha cabeça.

Dorme, inventado imprudente menino.
Dorme. Para que o poema aconteça.

(Hilda Hilst: Poemas malditos, gozosos e devotos)

sábado, 12 de abril de 2008

maré areia, mareia

o azul do mar só existe à noite. é ficção de lua. assim como o branco da areia é constraste invisível durante o dia. os oceanos do sul do hemisfério-mundo nasceram sob o signo de outras cores. aquarela de verdes misturados pelas ondas. se enxerga mais no barulho da arrebentação que na superfície das águas.

o mar como tema se desbota nas folhas do caderno. nos códigos das letras. não existem páginas aquáticas. não existem versos escritos n'água. não existe nada. apenas o cheiro de sal na brisa. já vento. violento.

os barcos cavalgam a linha do horizonte e se perdem por dentro das nuvens que tocam o teto do mar. fundo do abismo invertido de mais um afogado. mãos ao alto. sem saída. lágrimas por dentro da máscara do homem-rã que sempre chega atrasado.

peixes ao longe, voando como bailarinas. abrem-se as cortinas no cortante do arrasto. a rede descansando na areia é o fim da linha. restos de sargaço, sandálias. sentados, os pescadores contabilizam os estragos. e um cardume de crianças acena com os olhos suas vontades de mergulho.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

o horizonte móvel

"Nossas convicções mais arraigadas, mais indubitáveis são as mais suspeitosas. Elas constituem o nosso limite, nossos confins, nossa prisão. Pouca coisa é a vida se não bate pé um afã formidável de ampliar as suas fronteiras. Vive-se na proporção em que se anseia viver mais. Toda obstinação em nos mantermos dentro de nosso horizonte habitual significa fraqueza, decadência das energias vitais. O horizonte é uma linha biológica, um órgão vivo do nosso ser; enquanto gozamos de plenitude, o horizonte emigra, dilata-se, ondula elástico quase ao compasso da nossa respiração. Ao contrário, quando o horizonte se fixa, é que se anquilosou e que nós ingressamos na velhice."

José Ortega y Gasset, A Desumanização da arte.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

velho poema

aro bobô yí


quando Iansã
partiu
deixou
o mundo
todo molhado

saí de casa
e vi
nas águas sujas
das ruas
duas cobras gêmeas

nadando
na direção
do arco-íris


domingo, 6 de abril de 2008

buraco negro

as máquinas de fazer nada não estão quebradas.
Arnaldo Antunes


engrenagem que puxa o tempo. arranca as fibras das horas - momentos tornados farrapos - e mastiga tudo até que dentro de si haja nada. barulho de cacos de um relógio imaginário. espaço desfeito no anti-instante de mais uma revelação que não chega. as tomadas do universo alimentam o movimento morto. mecânico. retas invisíveis que se encontram no infinito. equações que comprovam paradoxos não nos levam a lugar algum. são passos no vazio. vácuo criativo embaralhando os números. tradução do silêncio em coisa artificial. ruído branco das palavras que se quebram em falta de sentido. não-galáxia onde se lêem todas as páginas do mundo impossível.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

arte e ciência

"a ciência se insemina subliminarmente.
a ciência é uma irmã caçula (talvez bastarda) da arte:
Camões pediu ajuda do engenho e da arte - não da ciência.
Salomão diz que 'ciência sem consciência não é senão a ruína da alma' - a arte não"

Cesar Lattes, físico