terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Bichos

Existem números que são percebidos visualmente: dois, três, seis. Baratas que saem debaixo da caixa que levanto para ver se há mais alguma coisa para arrumar naquele quarto vazio e sujo. Seis, nove, doze. Baratas demais para contar. Asas translúcidas, patas aos pares. Três, três, seis. Parece insuficiente falar de asas e patas quando se descreve uma barata. A barata é um bicho que voa. Não... isso também é insuficiente. O que dizer então? Que elas não me assustam como deveriam? Não conheço o nojo. Deixo que passem por cima dos meus pés, em direção a qualquer outro lugar onde possam se esconder. Nenhuma delas sobe por minhas pernas. Pernas, pés, dedos, chão. Junto dali dorme um cachorro. Um bicho que tem patas. Insuficientes patas que de nada servem quando me aproximo dele e piso em seu dorso. A sola do pé roça de leve as vértebras. Simétricas. Como os intervalos de tempo entre suas respirações. Forço um pouco o pé: acorda o bicho. Antes que possa latir, sinto sob meus pés seus ossos quebrando. É instantâneo. Penso que antecedi aquela sensação em alguns instantes. Talvez a dor de uma possível culpa me tivesse feito desistir. Não foi o caso. Nenhum remorso. Nada. As baratas já deviam estar bem alojadas em algum canto escuro. Lembrei de suas antenas e do modo como costumavam se mover no ar. Graciosas. Sorri. O cachorro não tinha culpa de nada. Nenhum remorso. E eu não tinha pensamentos na cabeça. Sentimentos debaixo dos meus pés descalços. Chão, dedos, pés, pernas. Cabeça. Vazio. Alma é um lugar que nunca existiu. Pelo menos não no caso dos cachorros. Qualquer defensor dos direitos dos animais concordaria comigo. As baratas são muito mais ameaçadoras. Elas também não têm alma. Imagine se venderiam nos supermercados frascos com veneno para eliminar cachorros? Apesar dos rótulos, os venenos funcionam indiscriminadamente. Os pés não foram feitos para matar. Nunca um cachorro me mordeu. Matei um como se fosse uma barata. Elas não gritam. Depois basta uma vassoura ou um pano de chão molhado. Pode haver até alguém que agradeça o gesto. Estive deitado nesse chão por tempo demais. O frio das lajotas. O sol insuficiente para me descrever. Respirações simétricas e inaudíveis. Contei as baratas que passavam. Números que são percebidos visualmente. Três, quatro, nove. Dois. Pés. Dedos, pernas, caixa. Senti uma pressão nas costas e depois uma ausência. Como se eu não estivesse ali. O quarto vazio. Cabeça inútil. Sem alma por dentro. Quando me acharem não saberão que estive morto o tempo todo.

2 comentários:

nando disse...

Produtividade em alta!!! Mas dessa vez não colou comigo... Apesar da obsessiva presença do inseto... É porque eu sei o que é nojo...

Cajadomatic disse...

Eu tambem tenho nojo, um nojo enorme, mas o fato é que ainda estou vivo, ainda bem, assim posso ler um texto assim, danado de bom.

Quando a alma vai, ela fica ali um pouco, olhando o corpo sem vida... com saudades da vida humana talves, mas acho que nao tem nojo das baratas.