segunda-feira, 7 de julho de 2008

Marulho

a mão que alisa meus cabelos
tem o barulho de dentro da concha

assanha os planos e pensamentos
de uma vida bem comportada

(movimento escondido
em forma de asa
no búzio da cabeça)

não preciso abrir os olhos
para ver o gesto da mesma mão
enrolando uma onda de volta pro mar
e fazendo calar o passado insistente

um respiro do céu
desabotoa angústias
na tarde de azul e calma

enquanto cada coisa
encontra seu lugar
nos recantos do vento

domingo, 6 de julho de 2008

sem título

fones de ouvido bem acomodados às formas incertas da cabeça. alta fidelidade na reprodução do silêncio da noite. 
do lado de fora, uma promessa vaga que não chega a se transformar em amanhã. vento quase simples, frio sem passado. as linhas das páginas desarranjadas pela falta de luz. e o tempo escrevendo nos relógios sua música sem movimento.
presente. 
fora do embrulho, os momentos murcham logo. bolhas de sabão. efêmeras oportunidades de beleza no espaço entre as paredes imaginárias deste quarto. plano infinito. janela sem eixo. 
talvez alguma idéia apareça na superfície do próximo instante. ou então, tudo terá sido apenas mais uma onda sem saída. desfeita em água de sonho.

sábado, 5 de julho de 2008

Canção

Zanza daqui
Zanza p'racolá
Fim de feira
Periferia afora
A cidade não mora mais em mim
Francisco, Serafim, vamos embora...

(Chico Buarque, Assentamento)


Versos que valem uma carreira de compositor.

sábado, 7 de junho de 2008

El poeta que no sabía leer

Canción tradicional peruana

(cantada por Susana Baca)



Yo no conosco la O

mas dicen que es redondita


Mi madre tan pobrecita

que a mi no me la enzeñó


Las letras se van al diablo

porque escribirlas no sé


Pero yo cuando les hablo

pero yo cuando les hablo

todas se ponen de pié

quinta-feira, 5 de junho de 2008

texto e obra

Roland Barthes          Paul Zumthor
                                                                                 


uma pequena reflexão que ainda não achou lugar melhor para ser desenvolvida...



Pesquisando a palavra cantada desde o ano passado, já me deparei com vários tipos de idéias e proposições de abordagem. Sob quase todas essas articulações teóricas que pude conhecer, pulsam algumas questões comuns que dizem respeito a limites: limites entre a palavra escrita e a falada/cantada; entre a literatura e a música; entre a enunciação e a recepção. Questões que nos fazem refletir sobre conceitos que precisam ser sempre repensados porque são vivos e não estanques.

Pensar a canção a partir de um ponto de vista literário significa  "entreabrir conceitos exageradamente voltados sobre eles mesmos em nossa tradição".  O texto escrito deixa de ser suficiente na produção do sentido, e somos obrigados a introduzir o "corpo vivo" na noção de literatura, já que "a performance é o único modo vivo de comunicação poética". Não fui eu que elaborei essa idéia, mas Paul Zumthor, medievalista suíço estudioso das manifestações da oralidade.

Zumthor dialoga com os teóricos da literatura na busca de uma ampliação de perspectivas para o estudo da literatura não como uma arte isolada, mas integrada a outras manifestações expressivas.

Desde o início de minha pesquisa, um ensaio de Roland Barthes  chamado "Da obra ao texto" tem sido importante fonte de reflexão e diálogo com outras idéias. Neste ensaio, Barthes desenvolve os conceitos de obra (algo fechado em si mesmo, completo e acabado) e texto (algo que transborda a obra, um campo epistemológico que se abre à construção do sentido). Deste modo, continua Barthes, se a noção de obra acompanha o que ele chama de Doxa (a opinião coletiva, condicionada por fatores históricos, sociais e políticos), a noção de texto seria sempre paradoxal. Ele explica em outras palavras: enquanto a obra acompanha o conceito de literatura vigente em um determinado contexto, o texto sempre desafia esse conceito e o obriga a uma constante revisão e ampliação.

Eis que, lendo Paul Zumthor e acompanhando seu desenvolvimento da idéia de performance, descubro um importante paralelo entre seu pensamento e as idéias expostas por Barthes.

A ironia é que eles usam palavras opostas para falar das mesmas idéias:
Barthes opõe obra (fechada, estanque, condicionada) e texto (aberto, plural, dinâmico). Já Zumthor opõe texto (a palavra escrita, enunciado mais ou menos definido) a obra (tudo que é comunicado, a manifestação viva da palavra num contexto mais amplo que o escrito). Obviamente eles falam sob pontos de vista distintos, daí a diferença na denominação dos conceitos: Barthes toma o texto escrito como ponto de partida e de chegada, enquanto Zumthor parte do texto para examinar as manifestações da voz humana, mais complexas e difíceis de serem apreendidas e interpretadas.

O importante é que ambos os casos apontam para uma abertura conceitual que abre novos caminhos na análise das manifestações da palavra (seja escrita ou oral) e nos incita a dissecar antigas definições para reexaminar sua validade teórica, tendo em vista a multiplicidade e o movimento das manifestações artísticas produzidas pelo ser humano.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Mortal Loucura

(Gregório de Matos musicado por Zé Miguel Wisnik)


Na oração, que desaterra … a terra,
Quer Deus que a quem está o cuidado … dado,
Pregue que a vida é emprestado … estado,
Mistérios mil que desenterra … enterra.

Quem não cuida de si, que é terra, … erra,
Que o alto Rei, por afamado … amado,
É quem lhe assiste ao desvelado … lado,
Da morte ao ar não desaferra, … aferra.

Quem do mundo a mortal loucura … cura,
A vontade de Deus sagrada … agrada
Firmar-lhe a vida em atadura … dura.

Ó voz zelosa, que dobrada … brada,
Já sei que a flor da formosura, … usura,
Será no fim dessa jornada … nada.



Ouça aqui.

domingo, 25 de maio de 2008

Contribución al estudio de la bruma

Félix Pita Rodríguez (Cuba, 1909-1990)

A Gustavo Eguren
que las ha visto


Las gaviotas nocturnas son de austeras costumbres.
Generalmente anidan en las ramas más altas
de los cierzos perdidos del invierno. Se alimentan de escarcha,
de los frutos maduros de la niebla y de las taciturnas
flores de la esperanza. Son calladas y mueren con frecuencia
víctimas de esa fiebre de incurables nostalgias
que diezma a los delfines más australes.
No tienem descendencia.

Se reproducen solas, de las plumas que pierden
las tormentas que a veces se extravían,
cuando imprudentes cruzan, sin las cartas de ruta,
por las noches polares.
Jamás hablan de amor,
desconocen la guerra, y tienen la costumbre de la duda.

Su extinción causaría daños irreparables,
pues sólo ellas conocen las fórmulas secretas
de las destilaciones del sudor de agonía,
recogido en las frentes de aquellos que murieron,
víctimas de la cólera de las grandes tormentas,
en las noches más frías.
Sudor que destilado según viejas fórmulas
que custodian severas las gaviotas nocturnas,
produce los aceites esenciales
con los que gota a gota se fabrica la bruma.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Passeio noturno

Beleza aguda é angústia na memória das retinas. Mas o olho da lua se abre no céu, e é quase como se faltasse alguma coisa naquela despreocupada imensidão. Meu corpo se faz nômade, caminhante de lugar nenhum, deitado sobre a tríplice fronteira. Nos braços, a areia se estendendo para além do mundo - porto que já não sabe das âncoras -, nos pés as ondas de um oceano raso - lençol de sereias - e no rosto o vento salgado que espalha estrelas junto com os pingos da chuva que inaugura a noite. De repente, ficou tarde demais. O escuro tem mil tons de azul que não deixam ver as marcas escritas por meus pés no espelho d’água. Aqui, a terra acaba. Somente o horizonte tem razão, quando quer entender como a paisagem se escreve por quem a vê. Na hora de voltar para casa, estou branco de espuma quarada em quintal de lua. O mar já não faz barulhos para quem conhece as ondas por dentro. Apenas escuto uma canção longínqua anunciando, quem sabe, lágrimas de saudade satisfeita ou a impossibilidade de voltar atrás. Sinto no peito a concha do coração me contando em sua língua de búzio sobre a vigília muda que me acompanha por todos os lugares. Agradeço numa reza em forma de mergulho: peixe que não entende o dialeto da rede.

22/12/2007

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Abandono

na sala vazia
a presença do espelho

atmosfera estagnada
que abre os olhos

para um mundo
onde o passado
persiste

único
e real

terça-feira, 6 de maio de 2008

Ani...




my i.q. (ani difranco)




when i was four years old
they tried to test my i.q.
they showed me a picture
of 3 oranges and a pear
they said,
which one is different?
it does not belong
they taught me different is wrong
but when i was 13 years old
i woke up one morning
thighs covered in blood
like a war
like a warning
that i live in a breakable takeable body
an ever increasingly valuable body
that a woman had come in the night to replace me
deface me
see,
my body is borrowed
yeah, i got it on loan
for the time in between my mom and some maggots
i don't need anyone to hold me
i can hold my own
i got highways for stretchmarks
see where i've grown
i sing sometimes
like my life is at stake
'cause you're only as loud
as the noises you make
i'm learning to laugh as hard
as i can listen
'cause silence
is violence
in women and poor people
if more people were screaming then i could relax
but a good brain ain't diddley
if you don't have the facts
we live in a breakable takeable world
an ever available possible world
and we can make music
like we can make do
genius is in a back beat
backseat to nothing if you're dancing
especially something stupid
like i.q.
for every lie i unlearn
i learn something new
i sing sometimes for the war that i fight
'cause every tool is a weapon -
if you hold it right.


domingo, 4 de maio de 2008

o nomadismo e a terra da memória

(foto de Xavier Cantat)

teatro de gestos. a palavra pronunciada pelo movimento. e pela música. voz de corpos que contam histórias. contos de um mar distante. casa de oceano, barcos e vento. depois, o sertão de desterro e desencontro.

andar em círculos é saber que não se abandona o umbigo. e que solidão compartilhada é matéria de vida.

[compagnie dos à deux - théâtre gestuel. espetáculo 'saudade em terras d'água']


quarta-feira, 23 de abril de 2008

poética da sobrevivência

cortar as palavras
para ver jorrar seu
sangue

repartir o pão
em santíssima
trindade:

apenas letras
imaginadas
no centro da mesa
vazia.

pronunciar o outro
para não esquecer
de si

e de que
resta a pele da voz

quando se faz
impossível
a escrita

domingo, 20 de abril de 2008

São João

o menino dorme
na rede
enquanto a tarde
se arrasta
em mormaço
e sono

seu braço
pendurado
balança sem vontade
e arrasta um bocejo
no chão.

o menino dorme
na rede
solto num instante
que se espraia

sem vento
sem motivo
sem ninguém
que o observe:


esquecido
da vida,
ele se deixa
sonhar

quarta-feira, 16 de abril de 2008

escultura de livro

Papel é matéria prima: para amantes do origami, para desenhistas e desenhadores, para correspondentes que insistem no sistema postal, para fazedores de jornal, para todo mundo que escreve (direto com caneta e lápis ou através da impressora), para quem acha que panfletos funcionam como propaganda... Papel é também matéria-prima de livro.

Livro é matéria-prima: para livreiros e donos de sebos, para professores/alunos/curiosos, para críticos literários, para quem compra por metro romances franceses encadernados em couro para decorar a sala. Livro é matéria-prima para quem não troca a leitura com os cinco sentidos (aquela leitura-abraço) pela tela fria do computador - que facilita muita coisa, mas não dá conta de tudo...

Mas livro de papel também é matéria-prima de escultura. Deixo aqui as palavras e uma imagem da artista inglesa Su Blackwell.


"Paper has been used for communication since its invention; either between humans or in an attempt to communicate with the spirit world. I employ this delicate, accessible medium and use irreversible, destructive processes to reflect on the precariousness of the world we inhabit and the fragility of our life, dreams and ambitions. It is the delicacy, the slight feeling of claustrophobia, as if these characters, the landscape have been trapped inside the book all this time and are now suddenly released. A number of the compositions have an urgency about them, the choices made for the cut-out people from the illustrations seem to lean towards people on their way somewhere, about to discover something, or perhaps escaping from something. And the landscapes speak of a bleak mystery, a rising, an awareness of the air"

Su Blackwell. Mais informações (e imagens) aqui.

terça-feira, 15 de abril de 2008

o sono de Deus

V

Para um Deus, que singular prazer.
Ser o dono de ossos, ser o dono de carnes
Ser o Senhor de um breve Nada: o homem:
Equação sinistra
Tentando parecença contigo, Executor.

O Senhor do meu canto, dizem? Sim.
Mas apenas enquanto dormes.
Enquanto dormes, eu tento meu destino.
Do teu sono
Depende meu verso minha vida minha cabeça.

Dorme, inventado imprudente menino.
Dorme. Para que o poema aconteça.

(Hilda Hilst: Poemas malditos, gozosos e devotos)

sábado, 12 de abril de 2008

maré areia, mareia

o azul do mar só existe à noite. é ficção de lua. assim como o branco da areia é constraste invisível durante o dia. os oceanos do sul do hemisfério-mundo nasceram sob o signo de outras cores. aquarela de verdes misturados pelas ondas. se enxerga mais no barulho da arrebentação que na superfície das águas.

o mar como tema se desbota nas folhas do caderno. nos códigos das letras. não existem páginas aquáticas. não existem versos escritos n'água. não existe nada. apenas o cheiro de sal na brisa. já vento. violento.

os barcos cavalgam a linha do horizonte e se perdem por dentro das nuvens que tocam o teto do mar. fundo do abismo invertido de mais um afogado. mãos ao alto. sem saída. lágrimas por dentro da máscara do homem-rã que sempre chega atrasado.

peixes ao longe, voando como bailarinas. abrem-se as cortinas no cortante do arrasto. a rede descansando na areia é o fim da linha. restos de sargaço, sandálias. sentados, os pescadores contabilizam os estragos. e um cardume de crianças acena com os olhos suas vontades de mergulho.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

o horizonte móvel

"Nossas convicções mais arraigadas, mais indubitáveis são as mais suspeitosas. Elas constituem o nosso limite, nossos confins, nossa prisão. Pouca coisa é a vida se não bate pé um afã formidável de ampliar as suas fronteiras. Vive-se na proporção em que se anseia viver mais. Toda obstinação em nos mantermos dentro de nosso horizonte habitual significa fraqueza, decadência das energias vitais. O horizonte é uma linha biológica, um órgão vivo do nosso ser; enquanto gozamos de plenitude, o horizonte emigra, dilata-se, ondula elástico quase ao compasso da nossa respiração. Ao contrário, quando o horizonte se fixa, é que se anquilosou e que nós ingressamos na velhice."

José Ortega y Gasset, A Desumanização da arte.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

velho poema

aro bobô yí


quando Iansã
partiu
deixou
o mundo
todo molhado

saí de casa
e vi
nas águas sujas
das ruas
duas cobras gêmeas

nadando
na direção
do arco-íris


domingo, 6 de abril de 2008

buraco negro

as máquinas de fazer nada não estão quebradas.
Arnaldo Antunes


engrenagem que puxa o tempo. arranca as fibras das horas - momentos tornados farrapos - e mastiga tudo até que dentro de si haja nada. barulho de cacos de um relógio imaginário. espaço desfeito no anti-instante de mais uma revelação que não chega. as tomadas do universo alimentam o movimento morto. mecânico. retas invisíveis que se encontram no infinito. equações que comprovam paradoxos não nos levam a lugar algum. são passos no vazio. vácuo criativo embaralhando os números. tradução do silêncio em coisa artificial. ruído branco das palavras que se quebram em falta de sentido. não-galáxia onde se lêem todas as páginas do mundo impossível.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

arte e ciência

"a ciência se insemina subliminarmente.
a ciência é uma irmã caçula (talvez bastarda) da arte:
Camões pediu ajuda do engenho e da arte - não da ciência.
Salomão diz que 'ciência sem consciência não é senão a ruína da alma' - a arte não"

Cesar Lattes, físico