quinta-feira, 3 de abril de 2008

arte e ciência

"a ciência se insemina subliminarmente.
a ciência é uma irmã caçula (talvez bastarda) da arte:
Camões pediu ajuda do engenho e da arte - não da ciência.
Salomão diz que 'ciência sem consciência não é senão a ruína da alma' - a arte não"

Cesar Lattes, físico

segunda-feira, 31 de março de 2008

Casa

chove. destelham a casa velha da esquina. a memória das paredes lavada pela água. sujeira que escorre para a rua sem passar pelo jardim. onde havia muro, cacos. onde havia porta, só o espaço. tapumes de uma construção futura. sem passado.

a casa habitou sonhos numa infância distante. já abrigou família de nome. já foi uma escola. de tão fechada que andava, ninguém percebeu que por dentro não morava mais gente. até chegarem escadas e marretas para expor o chão de ladrilhos ao céu. carregado. cinzento. não há mais teto que proteja seu brilho pacientemente encerado.

chove. destelham a casa velha da esquina. mais uma.

a casa continua habitando sonhos. ontem ela sobrevoava o bairro. flutuava serena, escolhia um dos arranha-céus mais altos e, de repente, sobre ele caía com a força dos anos. onde havia prédio, agora apenas a casa. olhando calma com seus olhos de janela os passantes que comentavam sem vontade como o passado vinha destruindo sem dó o futuro artificial que tentavam criar para aquela cidade. alguém dizia: mas isso não é só aqui, acontece no mundo todo! é o progresso! precisamos destruir para progredir!

acordei rindo da capacidade irônica daquela casa moribunda.

quinta-feira, 27 de março de 2008

acalanto

calor e silêncio. povoam o vazio meras memórias de ventania. tudo cala num instante que se estende até onde alcança a sede adiada em palavras não ditas. enquanto penso num eixo para tudo o que pretendo escrever, vai se esgarçando o tempo. revelando as falhas da dimensão presente. não consigo ver sentido no ar que pesa. não consigo ouvir calma na madrugada muda. o tecido do agora me aparece esticado no espaço. infinito. minha mão empunha a pena e quer rasgar o véu do falso sossego. mas o corpo se adianta e deita na rede daquele momento sereno. é a pele que vai tatuando as horas com uma canção sutil. uma canção que é apenas sopro. uma canção de olhos fechados...

quarta-feira, 19 de março de 2008

Solar

enxergo chuva nas sombras que projeto pela rua. são rastros de desejos. desdesejos. março não existe sem a memória enxuta da água que cai. as sombras breves são relato de um escuro passado. nuvens que se projetam em nuvens. no entanto, o céu me desmente em azul de fogo. arquitetura da luz na superfície de uma nova percepção da manhã. já tarde. o tempo é ficção de relógios. e não existe nenhuma noção do que seja agora sem o ontem que carregamos envolto em esquecimento. ninguém arranca folhas de calendários. são os dias que nos arrancam da vontade de permanecer. são os dias que transformam em ar a dor das ilusões tornadas realidade. são os dias que tecem em pelos de leão as formas exatas da memória. são os dias os presentes.

terça-feira, 11 de março de 2008

A Lua

o escuro é líquido. eu poderia ver todas as cores do invisível se abrisse os olhos. em vez disso, estendo as mãos. enxergo formas submersas. seres que dormem num mar de sonho. irmãos da espera. de repente, sinto que me tocam o rosto. e são meus próprios dedos tateando. do lado errado do espelho. o espanto agita os braços, como se nadasse.

a noite é líquida. as cores dos seres que eu não vejo se misturam às ondas do mar de águas negras. o olho do céu se abre acima do mundo. compasso de espera. três sonhos me foram enviados. três sonhos que me tocaram a fronte sem que eu acordasse. movimento invisível escrevendo caminhos na superfície do nada. torpor.

a vida é líquida. o corpo vibra em desespero. tenta fluir. mas não pode respirar. não existe fundo na alma noturna. a pele molhada acorda apenas quando a lâmina mistura o dentro e o fora. neste ponto exato, começa a vida.


sexta-feira, 7 de março de 2008

quinta-feira, 6 de março de 2008

novidade

texto novo no site primeira fonte sobre o filme "não por acaso"

domingo, 2 de março de 2008

Vibrações

Quero ser tambor
(José Craveirinha, Moçambique 1922-2003)

Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Oh velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!

sábado, 23 de fevereiro de 2008

óculos escuros

desculpe os olhos vermelhos. acordei antes de resolver meu sonho.

sim, ficou pela metade o gole de angústia. um meio-susto. quase pesadelo.
o sol veio rápido demais. balançava como uma lâmpada pendurada do lado de fora da janela.
no varal, negativos dos gestos de ontem expostos à luz do meio-dia. canção de ruídos esquisitos. melodia pelo avesso.
o verão persiste como tradução do corpo do mundo no suor humano. o calor faz com que o ar toque nas pessoas. as mãos do vento são quentes e úmidas. fazem brilhar a pele.

mais uma vez, a cidade amanhece como se nada tivesse acontecido.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Lido

quem me lê não entende. não escrevo ficção. realidade líquida, noves fora, texto fluido nascido do instante-agora em que tudo existe. fiel. tudo é filho do mesmo tempo e se vai na mesma velocidade com que o olho esquece o texto por que já passou. o já lido.

quem me lê não me entende. quero dizer o que digo. não troco nomes para preservar pessoas. identidades foram feitas para serem gastas no uso. e na sola dos meus papéis ficam as marcas do não escrito. até isso se registra por si mesmo. aquilo com o que não lido.

sou uma pessoa lida. por várias outras. alguns trazem o conhecimento de línguas segundas por julgarem compartilhada uma estrangeiridade. outros vêm com teorias sobre pontes e muros. ainda há os que preferem as lentes do olho nu. e todos estranham quando os sismógrafos nada acusam.

meu texto é claro para quem sabe escutar. de mãos vazias. sem vontade de compreender. não ofereço mapas além dos caminhos das palavras. todas as portas estão abertas. traço, linha a linha, o esboço de uma nova e inútil arquitetura. câmara de ecos num mundo de surdos-mudos.

a estrada silenciosa quase não mais se distingue da paisagem. e os livros continuam dormindo enquanto não aparece quem os abra.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Olhar/ver/enxergar

Sou cego também. Não porque veja menos. A miopia foi um presente que desde muito cedo fez meu olhar diferente. Gosto do que não vejo. As falhas do rosto, o cabelo mal penteado: tudo o que me escapa na hora do espelho me faz mais bonito. Minha imagem mais simples, sem tantos detalhes. Eu justo. Como tenho que ser.

Sou cego também. Não porque veja mais. Nem melhor que ninguém. Vejo como só eu sei ver. Só. E só eu percebo pormenores importantíssimos em tudo que atrai minha atenção. Coisas imprescindíveis ao meu ver. Questões de vida ou morte. Mas a vida e a morte são só minhas. Pessoais e intransferíveis.

Impossível falar do que vejo. Cada um vê como vê. Uns apenas olham, acreditando na falsa passividade desse gesto tão complexo.

Conheço gente que vê muito pouco, apesar de não precisar usar óculos. Eu sempre precisei, mas deixo eles em casa muitas vezes. Não me lembro de nada que perdi de ver por não estar de óculos. Conheço gente que deixa em casa a capacidade de enxergar sentido no mundo. E sai pela vida esbarrando nos próprios sentimentos. Ver é uma responsabilidade grande. E ninguém precisa de olhos para isso.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Reza em forma de música

Antífona
(Zé Modesto)

Nossa senhora mãe preta do Paraíba
Dá tua benção pra gente ir cantando em frente
E pela frente põe gente em nosso caminho
Pra nós cantar e ter sempre alguém ouvindo

Nossa senhora vigia
Esparrama o teu amor
Pra que na vida a poesia
Nos seja causa maior
Não seja a raspa do tempo
Que ele côa ligeirinho
Seja a poesia o alimento
A sustança no caminho

Cuida que haja o afago
E todo amor que ele tem
Que os corações que andam vagos
Encontrem logo seu bem
Nessa vida sem carinho
O nosso destino é vão
Quem é que na vida sozinho
Tem feliz seu coração

Sinhá preta seja abrigo
Nas horas de precisão
Que a gente saia do umbigo
E viva mais comunhão
Batendo menos cabeças
Fica leve a nossa cruz
Tua benção sinhá nas encrenca
Tua glória nos dias de luz


Mais sobre Zé Modesto aqui.
E aqui você ouve a música.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

luto por nascer

quando acaba o idílio, só nos resta recorrer à maturidade.

acendeu-se a luz. acabou-se a música.

não existem mapas para orientar os náufragos do sentido. náugrafos da palavra velha, puída pelo uso. a frase desbotada. mantra que já não funciona. esgotou-se na repetição.

sempre que a borboleta bate asas, cai morta uma tentativa desajeitada de alegria. o ser humano tem dificuldade em resistir à realidade. quando cai a máscara do sonho, parece mais fácil criar fantasmas que encarar o espelho.

como nos amedronta o silêncio. a ponto de nos provocar o grito que não deixa ouvir as ondas quebrando mansas na praia deserta. construindo palavras, sílaba por sílaba:

dentro de você, o ôco - vazio
fora de você, o eco - solidão

verdades que não queremos ouvir. verdades que alimentamos e deixamos crescer. como se fosse uma lei sem escapatória possível.

o mundo muda todo dia para quem não tem medo de juntar passado e futuro no momento-agora. fora disso, nada existe. só promessa e lembrança.

enquanto eu mantiver o hábito de escrever cartas para mim, saberei que alguém aqui dentro ainda existe enquanto projeto: motivo de impulso e busca.

04/02/08

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

perdão e esquecimento

Na eternidade, ninguém se julga eterno.
Aqui, nesta estada, penso que vou durar
além dos meus anos, que terei
outra chance de reaver o que não fiz.
Se perdoar é esquecer, me espera o pior:
serei esquecido quando redimido.

Não me perdoes, Deus. Não me esqueças.
O esquecimento jamais devolve seus reféns.

A claridade não se repete. A vida estala uma única vez.


(Carpinejar, Do livro 'Biografia de uma árvore')

sábado, 26 de janeiro de 2008

Rio

a vida do rio acontece apenas no ato de fluir. em suas águas, leva um universo indistinto que mistura passados e presentes, saudades e presenças, durações e intermitências...
as garças que redesenham contornos nas margens não imaginam que o silêncio ambiente está grávido de vozes tão velhas quanto o próprio mundo. quando chove, e as gotas órfãs de céu procuram abrigo na correnteza, parece que tudo fica suspenso. todo fio de pensamento é pequeno na frente de tanto infinito.
agora a paisagem já se veste de luzes e azuis. nuvens mansas navegam acima da linha do olhar. voltam para dentro da minha cabeça os barulhos prosaicos de sempre. é hora.
mas uma nova leveza nasceu. sinto que caminha por minhas entranhas. rarefeita. transparente. quase imperceptível. e, sem dúvida, líquida.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Zensider

Get this widget | Track details | eSnips Social DNA


Música de Edvaldo Santana e Ademir Assunção, na voz de Titane.

CD: Sá Rainha. Lapa Discos, 2000.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Recital

nunca amar
o que não vibra
nunca crer
no que não canta
(Orides Fontela)


guardada dentro do silêncio. é assim que ressona a muda memória da madeira. aquela que não apreende imagens, apenas vibrações. lá fora pode chover ou secar, mas aqui se respira o passado que ainda se move pelo interior das paredes. as paisagens se metamorfoseiam em fragmentos de cidades. mesmo assim, é raro que se registre algum sentido nas linhas deste livro cego. outras madeiras, mais móveis, andam através dos passos de outros entes. podem até refletir o céu dos dias abertos. mas também vivem presas atrás da capa transparente dos vernizes mais brilhantes. o que vibra nem sempre canta nos olhos de quem vê sem enxergar as notas evidentes de um presente real.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Da chuva...

não chega a fazer frio, mas é preciso acender as luzes da casa antes do tempo. a grande nuvem entra pelo vidro das janelas fechadas e traz para dentro o cinzento do céu que tentamos a todo custo manter do lado de fora.
o mundo suspenso durante um segundo de dúvida: no silêncio do telefone soa uma música incerta de espera e ambigüidade. dias de sol que adiaram seus verdes e azuis para talvez brilhar em outras praias.
agora que a água lavou todos vestígios da passagem de um impaciente carnaval, as ruas podem se vestir novamente com o vazio de passos ausentes. eles fazem barulho durante a madrugada, andando em direção a lugares que não chego a sonhar, ocupado com meu óbvio umbigo.
ainda ontem percebi que caminhava flutuando, preso ao cheiro invisível dos pingos de chuva não-derramados. como saber se vão cair? e se não forem, o que fazer com o preto inédito do guarda-chuva?
a promessa do amanhã leva no vento a passagem das horas. mas o que permanece sabe intuir a própria capacidade de enxergar no escuro. através dos vidros. e de usar a chuva como ferramenta para não esbarrar em janelas fechadas.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Pérola

Changer
(Anaïs Mitchell)

if I can't keep it
at least let me call it by name
that was called falling
this is called pain
it's called love, what I'm losing
I know love is a stranger
I know that changes come
I know love is a changer
I'm gonna go quietly

you don't have to tell me to
just let me lie a little longer next to you
I'm not trying to bother you
I'm just trying to breathe you in
and then I will leave you there
where you are sleeping
but speaking of loving you, I do

I'm telling you stranger to stranger
whatever changes come to you
I'm telling you changer to changer
morning has stolen your shadow from me

but I hold its shape in my mind
it's the shape of your back when you turned it on me
one last time
out in the waking world

nobody understands
exactly how light it is
exactly how free I am
one minute I'm laughing
and the next one I'm lost
I'm watching the birds fly by
I'm watching the highways cross
speaking of loving you, I do
I'm telling you stranger to stranger
whatever changes come to you
I'm telling you changer to changer
if I can't keep it, at least let me call it by name...




mais sobre Anaïs Mitchell aqui

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

movimento

não a mudança vazia que se veste de cascas mortas para preservar a todo custo um futuro mal sonhado. não a beleza oca de cores fugidias que serve apenas para entreter as retinas já cansadas de sua sina transparente. não as folhas que caem perpetuando ciclos arcaicos e incontestes de uma imutabilidade que se irmana ao trágico da morte. muito menos a carícia leve do vento que apenas finge passar para atingir finalidades outras que não o seguir seu caminho de ar.

o mundo está cheio de gente que acredita na metamorfose das coisas. essa gente tem razão sem saber. o que chamam de passagem não se mede com calendários. o que chamam de caminho não é o trajeto do trabalho à casa. o que chamam de mudança não são os óbvios que cultivam com tanto afinco.

se eu disser que conheço a natureza do fluir estarei mentindo. mas sei que nunca nada permanece. o essencial de tudo é efêmero. é esta a nota fundamental, o mínimo indivisível comum, a célula que pulsa por trás das intenções declaradas de um 'sempre' imaginário.

desejo o devir. abraço o etéreo num instante de irrepetível beleza. e que venham as areias do tempo a cobrir lembranças e reconstruir a memória. a cada página escrevo por cima do antigo texto dezenas de novas frases. de tudo fica o rascunho sempre inacabado e nunca passado a limpo. o borrão. traços que vão se confundindo em seus sentidos de cicatriz. e os mil riscos de viver. para sempre renovados em novas caligrafias.