terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Salve Itamar!



"Iauê ererê aiô gumbê
com licença do curiandamba
com licença do curiacuca
com licença do sinhô moço
com licença do dono de terra"

(Vissungo, Clementina de Jesus)

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O surdo som do cair de uma montanha

Um ruflar de asas. São as páginas do futuro que vieram soprar palavras novas no meu mundo. Mais estrangeiro que sempre. A espera de coisas que não têm obrigação de acontecer. Mas que se comunicam comigo do lado de lá do que ainda não existe.

"San Andreas Fault
moved its fingers
through the ground
earth divided
plates collided
such an awful sound

San Andreas Fault
moved its fingers
through the ground
terra cotta shattered
and the walls came
tumbling down"

(Natalie Merchant)

terça-feira, 2 de outubro de 2007

três pontos

Coincidência, pra mim, é eufemismo de afinação com o invisível.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

hai-kai em prosa

beija-flores na chuva. disparam como setas. mais rápidos que os pingos da paisagem móvel. a água não bate nas asas. mas os bicos levam outras gotas. néctar guardado na pressa do vôo. roubado sem rastro além do rumor das flores. zumbido de fuga, abelha de penas. cintila nas costas uma promessa de cor. assim que voltar o sol.

(06/08/07)

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Óculos

ainda não me acostumei a ver tanto assim. nos mesmos lugares por onde sempre passei, meus olhos estranham a ausência do que a memória se acostumou a procurar. o familiar que antes eu encontrava pelos caminhos conhecidos saiu dali sem aviso. mas não há estranhamento. o ser humano não desfaz seus laços sem que as mãos peçam por outros pontos de apoio. de tanto tentar segurar nuvens, meus dedos criaram calos. como os calos que criei segurando as cordas do meu instrumento. foi desafinando o mundo que descobri: agora o prumo se percebe do lado de dentro. onde sempre esteve.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Marterapia

se passares muito tempo olhando o mar
deves ter cuidado
além da alegre quase nostalgia que vais sentir
não deves nunca portar algo de metal contigo
a maresia dá ferrugem no metal

cuida para que teu coração de metal
teu olhar de metal
teu sentir de metal
teu pensar de metal
teu lindo rosto de metal
não estejam contigo
quando passares muito tempo olhando o mar
pois além da alegre quase nostalgia metálica que sentirás
o teu tudo de metal será ferrugem
aí... coitado de ti!
o teu todo de metal real brilhoso (fonte de orgulho)
será amarelo bronzeado sujo
a manchará a todos que contigo privarem
e aqueles que temiam o teu brilho
temerão muito mais tua ferrugem

Izaíra Silvino, Março de 75

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

ele

foi como num sonho. uma bolha de sabão envolvendo o mundo. e ele do lado de fora. ou era dentro?

o escuro da noite não o deixava ver. só conseguia enxergar as luzes acesas de um outro mundo. do outro lado.

por um momento teve medo. de se sujar quando cruzasse as paredes transparentes. de ficar preso naquela lâmina de vidro líquido. de evaporar junto com as novas luzes. de nascer.

o ar estava cheio de vozes. e o além parecia impossível. ele era inviável. absurdo. ainda não existia saída.

talvez fosse o tempo torto daquela percepção. ou a falta de costume em navegar sem os instrumentos da deriva.

ele poderia ter ficado ali. habitando para sempre aquela dimensão provisória. mas passou por lá um vento sem antes que o fez entender: ele era eu.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

te amo

foi quando eu não esperava que chegou a hora de abrir de novo os armários. momento de procurar a roupa de apaixonado que eu pensava já perdida. tateio com cuidado o vão escuro. até encontrar aqueles panos macios, habitantes de um passado tão familiar. o colorido tinha mudado com o tempo (desbotou?) ou foi a memória que guardou a velha fotografia com cores mais vivas que a realidade. olhando agora, com os olhos translúcidos pelo cheiro da naftalina das gavetas, vejo que nunca tinha de fato conhecido aqueles tons. era um arco-íris novo que eu segurava nas mãos. numa manga, o lunar dos cinzentos. na gola, os amarelos e laranjas das tardes. azuis e verdes mais pra baixo, onde o branco embota a paisagem. todo o estranhamento passou quando me vesti da novidade. mas tudo aquilo que me tornava mais nítido ainda era invisível a quem passava por mim na rua. ou será que não? agora havia novas respostas para antigas perguntas. a língua tropeçava nas palavras já gastas de tanto uso, extamente como fazia com aquelas que se desacostumou a pronunciar. quando o sol bateu em mim, tive medo de ter eu mesmo desbotado depois de morar no escuro por tanto tempo. foi quando o telefone tocou e lembrei que o movimento natural do coração é justamente esse de cultivar os pertos.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

pedalar

vento e pinceladas de sol. corrida rumo ao azul. mas sem pressa. o ritmo pode não ser só meu, mas respiro no mesmo compasso. todos os caminhos que ainda não apareceram estão nas voltas dos calcanhares. escolhas de um amanhã próximo.
acho que aprendi a querer. não desenhando com palavas uma escada até o céu. nem imaginando paisagens que não existem além do delírio. foi justamente quando lembrei que existiam coisas a perguntar na frente do espelho que consegui ver. foi como achar um par de óculos perdidos. talvez debaixo de um sofá qualquer. o ser humano é a única criatura que escolhe o que ver. e só vê o que quer. o resto, é escuridão. ou leitura labial da esperança - rouca de tanto dublar os nossos desejos.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

mil começos

sinto um roçar de cortinas abrindo no escuro. mas o sol já vai alto aqui fora. o ar tem cheiro de planta e alguns barulhos que lembram a infância distante. infância breve, que volta toda vez que me sinto perto de água. banho de mar. chuveirão. cachoeira. barco. sempre gostei dessa hora da tarde, onde o dia já se acostumou a ser dia e fica tão à vontade que já nem tem mais o que fazer ali: vai embora e chama a noite que quer chegar. até que isso aconteça, observo atentamente alguns contornos. bem à frente. tão nítidos que fazem doer os olhos. traços que tocam o ar numa miragem duvidosa, mas precisa. me incomodo como se olhasse por um falso espelho. um espelho imaginado, de reflexos que só se vêem por dentro. prefiro a transparência da água. teia translúcida que filtra a luz do dia. já tarde. ainda agora. recém-memória de um tempo ido no escoar do brilho de um copo de cerveja. hora de voltar e o caminho escuro é marcado apenas por sons. já não importa como voltar. nem mesmo para onde voltar. todo caminho é em frente. e todo momento é estréia.